Artigo

O Livro dos Espíritos
Uma Porta Entre o séc. XIX e o XXI

por Plínio Oliveira

Sempre que penso no Livro dos Espíritos de Kardec, reflito muito sobre o contexto histórico, social e cultural em que a obra surgiu. De fato, é impossível compreender qualquer idéia fora do espírito do seu tempo.
Na década de 1850 ainda não havia luz elétrica (a primeira central surgiu em 1850, em Londres, à carvão, e tinha força para iluminar não mais que um quarteirão), não havia rádio, televisão, cinema, computador, internet, automóveis, aviões.
Era ainda o que a historiografia chamou de “Era Vitoriana”, menção à Rainha Vitória, que ampliou significativamente o colonialismo inglês.
A Europa pouco sabia das tradições religiosas das outras partes do mundo e, como efeito da noção vitoriana da supremacia racial do europeu sobre outros povos, sempre que se falava das crenças de não cristãos, era num tom de quase piedade, porque eram consideradas inferiores.
A Ciência engatinhava (e ainda engatinha).
Ainda não houvera Max Planc, Einstein, Freud ou Darwin e Karl Marx ainda não publicara “O Capital”, embora em 1848 já houvesse produzido o seu famosíssimo “Manifesto Comunista” ao lado de Engels.
Os Estados Unidos eram um país agrário, onde os desbravadores do Oeste andavam armados e chamavam os nativos daqueles territórios de “pagãos” ou “infiéis”.
No Brasil o Imperador lutava por introduzir o modo de vida europeu nos costumes brasileiros. Lembremos que antes da vinda da família real portuguesa para cá o idioma mais falado era o Tupi-Guarani. O português foi sendo lentamente absorvido, mas restaram muitas palavras como mandioca, Iguaçu, tapioca, peteca...
Foi num mundo assim, sem petróleo, sem chips, sem anestesia, e onde as instituições democráticas ainda estavam em formação, que Alan Kardec trouxe à luz uma obra cujo valor a história ainda não soube reconhecer, não apenas por tratar com seriedade de temas normalmente desprezados pelos religiosos e pensadores do seu tempo, mas principalmente por incorporar aspectos da verdade universal presentes noutras tradições religiosas, científicas e filosóficas, mas tidas como ingênuas ou exóticas pelo pensador europeu vitoriano.
O curioso é que esse caráter transdisciplinar de O Livro dos Espíritos não foi produto da pesquisa de campo de um estudioso de tradições orientais, como vemos acontecer muito nos dias atuais, mas da comunicação mediúnica de espíritos desejantes de reviverem o cristianismo primitivo – berço de verdades então esquecidas – que despertaram para o interesse dos religiosos ocidentais temas tão diversos como reencarnação, vida em outros planetas, intercomunicação com espíritos, corpos espirituais, realidade extra-física e muito mais.
O Livro dos Espíritos - e o Espiritismo como um todo - foi grande precursor de um tempo que ainda virá, onde, superados os limites que a tecnologia acabou por nos impor, veremos a verdade não mais como uma projeção de imagens numa tela de cinema a que assistimos passivamente, mas como a própria imagem da vida captada na retina de nossa alma.
Estudá-lo, apreciá-lo e cultivá-lo como um vigoroso marco de transformação do pensamento religioso ocidental é indispensável para aqueles que buscam a verdade.
Reconhecer sua transcendência, não obstante suas raízes oitocentistas, é forçoso para qualquer estudante de mente aberta.
O Livro dos Espíritos é um guia para quem deseja transpor a porta do século XIX para o XXI. Apenas se faz necessária a ressalva de que não o transformemos numa camisa de força conceitual, de modo a que, dentro de 100 ou 200 anos, seja necessário que venha um novo Kardec nos libertar de nossos dogmatismos.
É quase desnecessário dizer que, uma vez atravessada a porta, ainda haverá um longo caminho a percorrer.

Somente Hoje - CHICO XAVIER